Narrativa Feminina

Esta é uma obra de ficção.
É proibida a reprodução parcial ou total dos textos sem a autorização do autor.

Thursday, October 21, 2004

Modernidade

-Você deve ser o Bernard! Prazer, eu sou Glória, mãe da Virgínia.
-Nossa, pensei que fosse no máximo uma irmã dela.
-Obrigada, você é muito gentil. Senta aí, vou lá chamar minha filha.
Minha mãe me avisou da chegada do Bernard e eu fui recebê-lo. Estava curiosa para saber o que era.
-Oi, meu querido!
-Está curiosa, não está?
-Claro!
-Vai ficar mais ainda, porque vai deixar a caixa aqui e só vai abrir depois! Vamos!
Até tentei relutar, mas não consegui, tive que deixar a enorme caixa em casa, sem saber o que havia dentro.
Seguimos rumo à noite paulistana, enquanto eu dirigia, Bernard dissertava sobre a beleza da minha mãe.
-Ela é muito nova para ser sua mãe!
-É, engravidou aos 16 anos, foi obrigada a casar, meu avô era do exército.
-E seu pai?
-Militante comunista e avesso a casamentos. Muito pequeno burguês para ele.
-Uau! Quantos anos ele tinha?
-19.
-Pensei que isso de gravidez na adolescência fosse um problema atual no Brasil.
-Na década de 70 também deveria ser. Só que apesar do tal amor livre, revolução sexual, todo mundo trepando com todo mundo, os pais ainda podiam obrigar suas filhas de 16 anos a casarem, ou melhor, obrigar os garotos que engravidavam suas filhas. Anticoncepcional não era tão difundido quanto o sexo, eu acho. Além disso, o HIV veio só na década de 80, camisinha, antes disso, que eu saiba, só Casanova e Cleópatra usavam.
-É verdade. Até hoje é quase assim. Eu, quando era heterossexual, quase não usava camisinha. Depois que me assumi gay, nunca fiz sexo sem.
-Sério?
-É, acho que os gays ficaram com mais medo, porque no início tinha aquele negócio de grupo de risco.
-Deve ser mesmo, alguns homens ainda se recusam a usar, mas eu perguntei se era sério que você já foi hetero.
Ele deu uma gargalhada e respondeu:
-Há muito tempo atrás, nem me lembro mais de tão ruim que era.
-Que pena!
Ele continuou a rir, disse que pelo menos eu não era daquelas que insistiam em dizer que isso acontecia porque ele nunca encontrou uma mulher de verdade e todas as baboseiras que se usam para tentar fazer alguém rever sua orientação sexual.
O caminho foi agradável e começo da balada também. Bernard estava adorando a casa, também, beijava na boca de cada homem lindo, um melhor que o outro. Eu até que me divertida, só que naquele dia eu estava um tanto deprimida, meio chateada e cansada de estar sozinha, preferi ficar um tempo observando, ora no bar, ora no lounge. O problema é que desde que o João entrou na minha vida, eu não via mais sentido em ficar com alguém por ficar. É bom, também, mas eu não conseguia. Talvez precisasse de mais tempo para voltar à ativa, sem querer mais que um dia.
Em um dos momentos em que fiquei encostada no bar, Bernard chegou para conversar. Junto com ele, um casal de namorados. O rapaz, que deveria ter seus 25 anos, se dirigiu a mim, dizendo:
-Gata, você é muito linda, estou doido para ficar com você, mas assim, você fica com minha mina também?
Puxei Bernard para o meu lado e disse:
-Só se você ficar com meu amigo também. Sabe o que é, eu sinto tesão em ver dois homens se beijando. E aí, topa?
Ele ficou bravo e a namorada também, acharam um absurdo a minha proposta, só Bernard que achou o máximo e ficou rindo.
-E se ele topasse, Vírginia?
-Eu ficava com a mina dele, ué. Ele não é tão moderno?
-Moderno? Machista, isso sim. Viu a namorada, será que ela aceita as mulheres porque gosta?
-Nada, mais machista que ele, porque se gostasse mesmo, não iria achar problema do namorado ser bissexual também, né?
-Verdade! Bem, minha querida, eu vou indo, vim aqui para me despedir, arrumei um par... Sabe o moreno de olhos claros que eu estava beijando?
Fiz um gesto afirmando que sabia, embora eu não soubesse. Ele beijou tantos! Nos despedimos e eu resolvi ir embora também. Confesso que voltei para casa meio tristonha. Essas coisas dão a sensação de que todo mundo se arruma, menos eu. Ainda mais quando eu lembrava que minha mãe também tinha se arrumado e só estava há dois dias aqui em São Paulo.
Chegando na portaria, dei de cara com João, dormindo no sofá da entradal. O porteiro o conhece, sempre deixa que ele entre, e eu me esqueci de dizer João não tinha mais o passe livre, que eu queria ser avisada. Acho que fiz isso para que ele chegasse de surpresa. A esperança é a última que morre, não é mesmo?
-João, acorda! O que você está fazendo aqui?
-Eu resolvi te esperar e aí peguei no sono. Que horas são?
-Três e meia.
-Caramba! Preciso embora...
Claro que eu não deixei!
Narre!-[ comments.]

Sunday, October 17, 2004

Minha mãe gosta de mulher!

-Mãe, vem ver se eu estou bem!
- Tá show!
- Show? Eu, hein? No mercado perguntou se "rolou" alguma coisa, agora diz que estou show! Fica saindo com garotão, vai acabar ficando monossilábica.
- Que preconceito... como você é boba e está ficando amarga! Quando eu tinha sua idade...
-Quando a Sra tinha minha idade, eu tinha 13 anos e a sra ainda era casada com meu pai.
- É, tem razão, quando eu tinha sua idade eu era pior que você. Aguentava aquele traste do seu pai!
- Não fala assim...
- Primeiro reclama das minhas gírias, agora reclama do jeito que falo do seu pai...
- Desculpe, eu sei que estou chata. É que ele é meu pai, né?
- É, é sim... embora ele tenha esquecido disso. Há quanto tempo não fala com ele?
- Quase 9 anos. Na verdade, falar, falar mesmo, a última vez foi aos 13 quando ele me contou que vocês iriam se separar... Lembro exatamente da frase: "Filha, tudo que eu menos quero é te magoar". Acho que ouvi isso a minha vida inteira de todos os homens. Com algumas variações, claro.
- Tipo: "não quero que você se envolva"....
- É... ou: "Você é muito especial, não tenho o direito de te fazer sofrer".
- Homens, não importa a idade, falam a mesma coisa sempre.
- E os garotões, mãe, são diferentes?
- Quando você tinha 18 anos eles não faziam a mesma coisa? Não importa a idade, Virgínia, esquece essa bobagem...
- É, tem razão...o João sempre diz isso.
- Falando nele, como você se apaixonou? Cê é cheia de coisas, gosta de homens cultos, refinados. João não é nada disso.
- É, mas é mais sensível que todos os homens que conheci. Tinha um sorriso de criança. Era especial. Difícil explicar. Ele dormia nas peças que eu o convidava para ver, achava um saco a conversa dos meus amigos, mas sempre roubava a cena. Tinha a frase exata, entende?
- Entendo. Pelo jeito ainda gosta dele, né?
- Acho que sim... Quando conheci o francês até tive uma esperança, mas...
- É com ele que vai sair, né?
- Ele vai passar aqui, disse que quer me dar um presente. Eu disse a ele que era mais fácil eu buscá-lo no hotel e que guardaria o presente no carro, só que não adiantou. Parece que o presente é um tanto frágil e Bernard quer que eu só abra pela manhã. Disse que tem que estar longe, para eu lembrar dele logo cedo
- É, tinha que ser gay, homens perfeitos assim não existem.
- Nada, nem todo gay é assim. A maioria não é... são homens, mãe.
- É, eu sei. Houve um tempo que achei que mulheres eram diferente. Até saí com umas duas, mas também não tem diferença.
-O Quê? A senhora já saiu com mulher?
- Já, qual o problema? Você nunca?
- Nunca.
- Como é limitada essa minha filha... Se não fosse o traste do seu pai, iria achar que foi trocada na maternidade!
- Não sou tão limitada assim. Só não me sinto atraída por mulheres... Parece que está na moda ser bi, pelo jeito. Até minha mãe é...
- Não quer saber como foi?
- Não, obrigada... A senhora não quer ir com a gente, não vai achar nada demais em ir numa balada GLS, né?
- Não, até quero conhecer, mas hoje vou sair com um cara que conheci ontem no supermercado.
- Hã? Eu vou aquele supermercado há 5 anos e nunca flertei com ninguém!
- Nossa, há anos que não ouço o verbo flertar. Deve ser por isso que ninguém chegou perto. Quem fala flertar dá medo nas pessoas...
É, tenho muito que aprender com minha mãe.




Narre!-[ comments.]

Tuesday, October 12, 2004

Eu poderia ter acordado sem essa...

Primeiro é o telefone que me acorda, depois é a porta que não me deixa voltar a dormir.
- Mãe?
-Não, um ectoplasma dela. Que pergunta! E que olheiras!
-E que malas são essas?
-As minhas, ué.
Achei melhor não perguntar nada e decidi ir ao supermercado. Não poderia voltar a dormir mesmo e queria ficar sozinha.
-Mãe, eu estava indo ao supermercado, tudo bem?
-Tudo ótimo! Vamos!!!
-Vamos?
-É, vamos. Mas antes você vai se arrumar, né? Você está horrível!
Estava muito cansada para discutir, deixei-a fazer o que quisesse.
Fui com ela ao supermercado e comecei a pegar os produtos de maior necessidade.
-Vinho francês, vinho branco alemão... vai dar um festa?
-Não, tem muito sangue na minha corrente alcoólica, preciso repor.
-Pinga não resolve? É mais barato...
-Não, sou uma alcoólatra fresca.
-Põe fresca nisso. E pra que tanto chocolate, além de alcoólatra é chocólatra?
-Li numa revista feminina que substitui o sexo.
-Tá lendo revista feminina?! Você sempre me criticava, falava que essas revistas não passavam de manuais para mulheres de borracha.
-Essa estava na sala de espera da dentista.
-Ah, tá. Mas e o francês, não rolou nada?
-É gay.
-Só porque não quis subir? Olha o preconceito.
-Não, ele falou. Pouco antes da senhora chegar, ele tinha me telefonado..
-Então é por isso que o João pediu pra você sair com ele....
-João não sabe. Ele me ligou justamente por isso, queria que eu o levasse para umas baladas GLS, porque não agüentava mais ir nos lugares que o João o levava. Acredita que na noite passada, foram num puteiro?
-Bem a cara do seu ex. mesmo. E o que o francês fez pra disfarçar?
-Disse que estava interessado em mim. Aliás, um dos motivos para o Bernard não ter me ligado antes foi o ciúmes do João.Ele disse que cinema e essas coisas cults eu era boa companhia, mas pra balada não, porque eu só ia em lugar "diferente"... Mal sabe ele que é nesses lugares "diferentes" que o francês quer ir.
-Pois é, mas tá na hora de você parar de ir em lugares "diferentes", senão vai acabar ficando uma baleia de tanto comer chocolate.
-Ah, também não é assim. E a senhora, por que as malas?
-Quero passar uns dias com minha filha, não posso?
-Fala a verdade, mãe.
-Pega um tablete desse aí pra mim?
-Brigou com o Marcelo?
-Marcelo? Eu terminei com o Marcelo há três meses, Virgínia. Esqueceu que era Flávio, o nome do último que te apresentei?
-Ah é, o surfista, mais novo que eu... Pra que a senhora quer chocolate, brigaram há quanto tempo?
- Ontem... só que, sabe como é, garotão, surfista... Havia uma certa regulari...
-Tá tá tá, já entendi, não quero saber, não é da minha conta.
-Ué, só por que eu sou sua mãe?
-A Sra fala só? A minha mãe tem uma vida sexual mais ativa que a minha, quer me contar detalhes e ainda acha que é pouco?
Deixei-a próxima ao carrinho e fui na direção da seção de bebidas.
-Filha, onde você vai?
-Seguir seu conselho e pegar pinga....
-Não vai devolver os vinhos?
-Claro que não! A Senhora ainda sabe fazer caipirinha, né? Vou pegar limão também... e mais chocolate! A matéria da revista também falava algo sobre chocolate ser antidepressivo.
Garotão, regularidade... e ela ainda diz isso tão naturalmente! Eu preciso dormir! Argh!
Narre!-[ comments.]

Wednesday, September 29, 2004

Godard, Piaf e champanhe.

Lá estava ele me esperando, encostado no carro e sorrindo, satisfeito por ter me convencido. Olhou para mim e disse:
-Menina, você está linda!
-Não precisa elogiar, já topei, não topei? Cadê o...
-Bernard! – virou-se para o carro chamando-o – Essa é Virgínia, a amiga que irá te acompanhar ao cinema.
-Ele é francês... hum... tá explicado...
-O que a Srta disse?
-Nada, é que o João não me falou quase nada sobre você. Então, prazer, primeira vez no Brasil?
-Prazer é meu, Virgínia... eu já nem sei mais quantas vezes eu estive no Brasil.
-Você fala muito bem o português... posso chamar de você, né?
-Claro... Claro... não estamos na Itália...
-Fala Italiano, também?
-Falar, falar, eu falo 4 línguas, além do francês, é claro. Inglês (fazendo cara de asco), português, espanhol e italiano. Ler, eu leio algumas outras...
-Nossa... – meus olhos brilharam naturalmente diante daquele homem tão interessante e charmoso. Francês tem uma arrogância charmosa incrível. Brilharam mais ainda quando notei que João não estava gostando nada do meu interesse em Bernard e nos interrompeu:
-Vamos? Eu tenho que pegar uma garota depois que deixá-los na porta do cinema.
Apesar do tom grosseiro e da minha satisfação em vê-lo irritado, não liguei em saber que ele tinha um encontro. Bernard se manifestava como um oásis no deserto. E que deserto! Desde o fim do meu relacionamento com João, não sei o que é um encontro amoroso. O mais interessante é que esse oásis me é apresentado justamente por quem me colocou na seca.
Entramos no carro e João nos deixou em frente ao cinema, sem se despedir, pois estava ainda mais irritado pela compatibilidade de gostos entre mim e Bernard. Nos demos tão bem que peferimos ir de táxi, sem dar atenção às recomendações de João que nos fez prometer ligar para ele vir nos buscar.
Entusiasmado com a noite agradável, que uniu "Passion", jantar marroquino e uma conversa cheia de respostas perfeitas e esperadas sobre Edith Piaf, Bernard pediu para o taxista parar no Hotel onde estava hospedado. Nesse momento, uma timidez incontrolável tomou conta de mim, não sabia o que fazer e mal consegui responder, quando ele disse:
-Virgínia, espere um pouco aqui, volto já com uma surpresa...
Fiz um gesto com a cabeça, um tanto curiosa e um outro tanto decepcionada por não ter sido convidada para subir. A curiosidade foi matada logo, nem dois minutos e ele já havia voltado com um CD da Piaf nas mãos.
-Pra você! Um presente meu, para que nunca se esqueça de mim. Você é uma mulher inesquecível, apaixonante...
-Agradeci e seguimos para minha casa. A decepção, que havia se tornado euforia, voltou como único sentimento que me possuía.
-Não quer entrar?
-Não, estou cansado, tenho uma reunião logo cedo. Mas eu anotei seu telefone assim que João me falou sobre você.
-Então tá...
Subi, sem curiosidade alguma em saber o que João falou sobre mim. Estava tão desanimada pelo fora, discreto, é verdade, mas ainda assim um fora, que havia acabado de levar, que nem lembrei de perguntar. Entrei, peguei a champanhe que comprei para o meu aniversário, na esperança de João chegar, de surpresa, e que, na noite de hoje, esperava tomar ao lado de Bernard, e coloquei Piaf para povoar a casa.
Na secretária, dois recados de João, transtornado por não termos ligado, que, ontem me fariam brindar, mas que naquele momento não melhoravam em nada minha tristeza e solidão... Só estava faltando um temporal, daqueles que sempre acontecem em filmes e a mocinha solitária vai à janela olhar. Se bem que aqui não adiantaria muito, a vista é para o prédio da frente cuja única coisa que dá pra ver é o Bubu, um urubu que se instalou no teto por causa da proximidade com o rio Pinheiros.
Narre!-[ comments.]

Saturday, September 25, 2004

Primeiro dia de Balzaca.


Foi como tinha de ser: uma reunião com os amigos mais íntimos. Como a do ano passado, inclusive, com a diferença da presença dele, fazendo suas piadinhas, brincando com os meus amigos, sendo o centro das atrações como sempre. Parecia que a festa era para ele, e eu, a aniversariante, apenas uma coadjuvante. Algo como naqueles filmes em que se precisa de uma festa para que a estrela principal possa brilhar. Esse ano, embora tenha sido uma comemoração agradável, não havia estrela do filme.
Todos se divertindo bastante enquanto eu passeava de grupo em grupo, conversando sobre amenidades. Acho que minha vida pode ser resumida a isso: passear de grupo em grupo conversando amenidades. Confesso que pensei que ele iria aparecer, de repente com um caranguejo na mão... Chegaria no meio da festa, sorriso lindo iluminando seu rosto de menino que fez arte, e roubaria a cena, como sempre fez.
Nos conhecemos assim, num momento eu estava triste, sem saber o que fazer da minha vida, no outro, ele chegou e roubou a cena. Não lembro exatamente do que aconteceu, só lembro que quando me dei conta, estávamos andando de mãos dadas, sem que eu sequer tivesse percebido o momento em que ele pegou na minha mão.
Esse ano, deixou um recado na secretária avisando que teve que viajar, por isso não poderia aparecer. Foi cínico ao lembrar que eu não o convidei. Eu sei que deveria tê-lo feito, mas ele me ignorou solenemente, logo após o término do nosso relacionamento, quando fui convidá-lo para uma festa. Fiquei arredia, inevitável. E, talvez, nem seja questão de orgulho, é o fato de que, pelo menos uma vez, eu gostaria muito de que ele tomasse a iniciativa. Durante todo o tempo eu tive que fazer tudo sozinha, até mesmo para que ele me tocasse, tinha que trazê-lo junto a mim. Depois do primeiro passo, "ele pegava no tranco", só que, sem perceber, acabou com minha auto-estima nesses pequenos detalhes. E eu precisava de tão pouco...
Passei um longo período me perguntando se ele era assim com todas, até que um dia o vi com outra e percebi que não. Ele parecia bem feliz ao lado dela, como se não conseguisse ficar dois segundos sem tocá-la. Era a primeira vez que eu o via com outra e por isso não deixei que me visse. Não queria que me surpreendesse chorando. Depois, acabei me acostumando em vê-lo na companhia de outras mulheres.
-Alô?
-Oi, menina, recebeu meu recado?
-Ah, é você. Sim, recebi. Já chegou de viagem?
-Cheguei hoje.
-Cê foi viajar mesmo ou tava tre... ou era uma desculpa?
-Claro que fui, não tava trepando com ninguém não.
-Bem, se era pra saber se recebi o recado...
- Na realidade não, eu queria te chamar para ir ao cinema. Tá a fim?
-Bem, eu estava saindo para isso...
-Ah, legal, te pego em uma hora, pode ser?
-Não precisa, nos encontramos lá.
-É melhor eu te pegar, é que eu tô servindo de babá prum gringo e ele quer ir ao cinema, só que é pra ver um filme do Godard. Eu mereço, né? Só vejo filme do Godard para tentar comer intelectuais, você deve saber disso.
- Eu nunca te chamei pra ver Godard...
-Não, mas me chamou para ver peças de teatro experimental... Bem, o fato é que você é a única pessoa que eu conheço que agüenta Godard sem dormir, então disse a ele que eu não iria, mas eu tinha uma amiga que poderia acompanhá-lo.
- Eu não sei por que ainda não te mandei pra puta que pariu. Renova seus amigos...
-Ah, o que custa? Pô, cê ia ver que filme?
-Passion, do Godard...
- Aí, tá vendo? Te arrumei companhia. O cara é gente boa. Quebra essa, vai?
- Mas por que uma hora? Eu já estou pronta.
-É que eu tenho que buscar o gringo antes..
.-Tá bom, eu espero.
-Por isso que eu te amo!
Eu odeio quando ele faz isso! Eu deveria ter dito outro filme, eu sei, até tentei, mas não consegui. Droga! Por que eu nunca vejo o que está passando em Shopping? Sou uma boba mesmo. Agora é esperar e ver no que dá...
Narre!-[ comments.]

Um dia de caranguejo

Parece sina encontrá-lo quando vou ao cinema. Dessa vez, não na saída, mas um pouco antes da sessão começar, na loja de bichos de pelúcia.
- Menina! Comprando um bichinho para dormir com você? Pelo jeito aquele negócio de não ter ninguém para deixar uma fita te bagunçou.
- Sempre engraçadinho. Tava procurando uma lagosta.
- Lagosta? Melhor você ir ao Mercado Municipal.
- Isso que você disse foi para rir?
-Não fique brava. E a arara que eu te dei, não serve mais para dormir com você?
- Não é isso, é que eu quero uma lagosta agora. E você, o que faz aqui?
- Te vi entrando...
- Tá sozinho? Que milagre te encontrar por duas vezes sozinho...
- Acabei de deixá-la em casa, na verdade.
- Ainda é a mesma?
- Qual mesma?
- A que jura que eu sou uma louca viciada em achocolatado e deve ter uns17 anos.
- Não, é outra agora... e ela já tinha 18.
- Melhor, né? Não corre o risco de ser preso.
- Crime de Sedução é de 16 anos, creio que tenha baixado para 14, não tenho certeza.
- Tá bem informado, hein?
- Não era você que queria conquistar um garotinho de 16?
- Você sabe que era brincadeira.
- É, eu sei, se ele disser que tem 25 você já descarta.
- Não exagera, 25 são só cinco anos menos, já 18 são 12, né?
- E qual o problema, menina?
- O problema é a lei da gravidade.
- Os homens também sofrem com ela, temos que desafiar essa lei sempre.
- Mas aí que está, quando ela for aplicada em mim, ele não vai conseguir desafiar nem com reza braba, vou ser trocada por uma de 12, o que é o fim para uma mulher.
- E quem disse que você não corre esse risco com um homem da sua idade ou mais velho?
- Eu sei que corro até mais risco com um homem mais velho, mas isso não me salta aos olhos quando tenho que conhecer os amigos dele.
- Boba, a garota que acabei de deixar em casa tem 23 anos e vocês parecem da mesma idade, ninguém diz que você fará 30 anos semana que vem.
- Você ainda lembra...
- É, você é que não lembra.
- Eu lembrei, comprei presente, cartão, rascunhei e-mail, mas...
- Mas?
- Desisti, quem anda pra trás é caranguejo, você me ensinou isso.
- Eu sei... - ele ficou em silêncio por alguns segundos e disse - mas e aí, achou a lagosta?
- Não, gostei da coruja, só que vou decidir uma outra hora, agora já está quase na hora da sessão começar. E você, vai ficar aqui?
- Acho que sim, me deu vontade de comprar um caranguejo, quem sabe eu acho.
Nessa hora senti uma vontadade absurda de abraçá-lo, mas achei melhor ir embora sem qualquer contato físico. Sabia que se fizesse isso, não iria querer mais sair de seus braços e teria que fazê-lo assim que amanhecesse. Nosso problema sempre foi esse, com a diferença que quando estávamos juntos, eu é quem pedia para que ele fosse embora ao amanhecer...
Narre!-[ comments.]

A fita

Tive uma crise de choro após o filme. Não consegui esperar o final dos créditos para ouvir a musiquinha e não atendi aos gritos do porteiro acostumado a comentar a película comigo, após a sessão. Saí correndo em busca de um café isolado e com no máximo duas ou três pessoas além do garçon. Sentei e torci para que o garçon não me perguntasse nada além do que eu queria, pois estava difícil segurar as lágrimas. Muita sorte ele trazer um café, sem nem olhar para o meu rosto, completamente deformado e inchado de tanto chorar. Após trinta minutos, quando finalmente consegui controlar o choro, sem ter tocado no café, pedi a conta. Resolvi andar um pouco e pensar. Enquanto andava pelas galerias atrás de alguma coisa boba que me fizesse esquecer os motivos do choro, encontrei-o. Dessa vez estava sozinho.
- Oi, menina. Cê tava chorando? Aconteceu alguma coisa, seus olhos estão vermelhos e inchados.
- Nada demais, tive uma crise de choro após um filme.
- Que filme?
- Minha vida sem mim. Sei lá, de repente percebi que vou fazer 30 anos, daqui a poucos dias, e não tenho ninguém para deixar uma fita.
Nessa hora olhou-me assustado, jamais me imaginaria chorando ao ver um filme desses, jamais me convidaria para ver um filme assim. Só lembaria de me convidar para ir ao cinema, se fosse para ver um filme russo com legenda em alemão, mesmo assim para tentar me impressionar, e só me imaginava em cinematecas assistindo mostras do Fellini ou Godard.
Mostrou-se preocupado, nunca havia me visto tão transtornada, que até pegou na minha mão e convidou-me para irmos à sua casa, tomar um achocolatado e ouvir Chico Buarque. Apesar de esperar por quase um ano para encontrá-lo sozinho e ter sonhado com esse convite, não aceitei. Abaixei a cabeça e disse que era melhor ir embora. Ele só conhecia 10% de mim e ainda assim não conseguiu me amar...
Narre!-[ comments.]

Achocolatado

Os termômetros marcavam dez graus e a neblina cobria essa cidade que já é cinza por natureza. Ainda assim resolvi sair, não aguentava mais ficar prostrada diante da TV, zapeando. Precisava de gente e de ficção. Decidi ir ao cinema. O frio parecia emudecer as pessoas e as impedia de sorrir. Durante o caminho, percebia a imagem do meu rosto refletida nas vitrines das lojas já fechadas. Era um rosto acinzentado e de espera. Eu me vi parecida com uma velha professora que conheci há quinze anos atrás. Ela usava óculos que ocupavam muito mais que a área dos olhos, seu corte de cabelo lembrava as francesinhas da década de 30 e seu rosto era acinzentado e de espera.Apesar da delicadeza da película, não saí tocada como gostaria. O frio tocava-me muito mais naquele momento e por isso resolvi passar num supermercado para comprar achocolatado, antes de voltar para casa. Já com achocolatado na bolsa, seguia rumo à estação de metrô quando fui surpreendida por uma voz:
- De onde você está vindo, menina?
Era ele, só podia ser, reconheceria aquela voz ainda que não a ouvisse por décadas, fora o hábito de chamar-me de menina, apesar de termos a mesma idade, apenas alguns meses de diferença. Olhei para trás e tive a confirmação. Estava acompanhado por uma garota que deveria ter no máximo 20 anos. Fiquei parada sem conseguir dizer uma palavra. Estava paralisada olhando o casal. Novamente ele perguntou:
- De onde você está vindo, menina?
- Do mercado, fui comprar achoco... - não consegui terminar a frase, um alarme tocou no meu cérebro e denunciou a grande bobagem que eu estava dizendo. Ele, é claro, não perderia a piada por nada e logo disse:
- Nossa, precisava vir do outro lado da cidade para comprar um achocolatado?
A garota, sem entender, perguntou:
- Como assim, onde ela mora?
Fiquei completamente atordoada ao ver a expressão da moça quando ele respondeu sua pergunta. Ela olhou-me como quem fosse dizer: "você é maluca, sair nesse frio só para comprar achocolatado e num supermercado tão longe da sua casa? "
Já tinha levado a fama, resolvi deixar o constrangimento de lado e respondi:
- Pois é, eu sou viciada em a achocolatado, não posso ficar nenhum segundo sem. Mas tem que ser o de uma marca específica e não tinha perto de casa, nem por todos os supermecados no caminho até aqui. Ainda bem que encontrei , minhas crises de abstinência são terríveis. Quase matei meu irmão, da última vez e cheguei a ferir, gravemente, meu cachorro.
A moça ficou assustada, parecia realmente acreditar que eu seria capaz de matar se ficasse sem achocolatado. Ele, porém, percebeu a brincadeira e sorria como no tempo em que estávamos juntos. Por instantes nos olhamos como se estivéssemos lembrando dos mesmos momentos e nos perguntando o que aconteceu. A mão de sua acompanhante ao entrelaçar a dele, indicando que pretendia ir embora, respondeu nossa pergunta. Constrangido, despediu-se de mim friamente e foi embora com ela. Eu continuei em direção ao metrô, caminhando com a mesma lentidão e timidez da lágrima que caia sobre meu rosto que já não esperava mais nada...
Narre!-[ comments.]

As coisas que beijei e não vivi

Creio que tudo está virando carta neste momento em que exorcizo um ponto obscuro da minha vida. A paixão inicial que se transformara em obsessão, hoje não passa de uma necessidade para me livrar de quatro frustrações, pontos que marcam uma divisão de olhar. A cada segundo que passa tenho medo de chegar aos 30 anos, devo confessar, embora faltem poucos dias para isso. Estou com medo de envelhecer, medo da passagem dos anos e das horas. Não é uma questão estética, não me importo com a lei da gravidade. Se meus seios não estarão firmes, se minha bunda cairá, ou mesmo se terei rugas e nenhum homem se interessará por mim. Nada disso me importa, nunca me considerei uma mulher bonita e atraente. A única que vez em que um homem elogiara exaustivamente meus dotes físicos, contrariou-me tanto que sentia-me como um pedaço de carne, pronta para o abate, mesmo fazendo um esforço enorme para que ele só me enxergasse assim.O medo dos 30 anos é maior que os valores sociais, estéticos ou algo do gênero. O medo dos 30 anos nasce da idéia fixa em romper com a necessidade da intensidade. Chega o momento em que a dor não tem razão, a tristeza e o pessimismo me enojam. O asco pelo descrédito é tamanho, que chego a acreditar-me incapaz de enxergar um caminho para fugir do guarda-chuva em céu de brigadeiro. Sinto asco de tudo que construi. Mulheres entram na minha vida para que eu elimine-as dela. Um basta em literaturas tristonhas...Quero uma casa de filme americano, filhos e um marido chegando com pão frequinho para tomar café.Quero, pela primeira vez, não achar essa cena enfadonha e entediante.
Narre!-[ comments.]