Narrativa Feminina

Esta é uma obra de ficção.
É proibida a reprodução parcial ou total dos textos sem a autorização do autor.

Wednesday, September 29, 2004

Godard, Piaf e champanhe.

Lá estava ele me esperando, encostado no carro e sorrindo, satisfeito por ter me convencido. Olhou para mim e disse:
-Menina, você está linda!
-Não precisa elogiar, já topei, não topei? Cadê o...
-Bernard! – virou-se para o carro chamando-o – Essa é Virgínia, a amiga que irá te acompanhar ao cinema.
-Ele é francês... hum... tá explicado...
-O que a Srta disse?
-Nada, é que o João não me falou quase nada sobre você. Então, prazer, primeira vez no Brasil?
-Prazer é meu, Virgínia... eu já nem sei mais quantas vezes eu estive no Brasil.
-Você fala muito bem o português... posso chamar de você, né?
-Claro... Claro... não estamos na Itália...
-Fala Italiano, também?
-Falar, falar, eu falo 4 línguas, além do francês, é claro. Inglês (fazendo cara de asco), português, espanhol e italiano. Ler, eu leio algumas outras...
-Nossa... – meus olhos brilharam naturalmente diante daquele homem tão interessante e charmoso. Francês tem uma arrogância charmosa incrível. Brilharam mais ainda quando notei que João não estava gostando nada do meu interesse em Bernard e nos interrompeu:
-Vamos? Eu tenho que pegar uma garota depois que deixá-los na porta do cinema.
Apesar do tom grosseiro e da minha satisfação em vê-lo irritado, não liguei em saber que ele tinha um encontro. Bernard se manifestava como um oásis no deserto. E que deserto! Desde o fim do meu relacionamento com João, não sei o que é um encontro amoroso. O mais interessante é que esse oásis me é apresentado justamente por quem me colocou na seca.
Entramos no carro e João nos deixou em frente ao cinema, sem se despedir, pois estava ainda mais irritado pela compatibilidade de gostos entre mim e Bernard. Nos demos tão bem que peferimos ir de táxi, sem dar atenção às recomendações de João que nos fez prometer ligar para ele vir nos buscar.
Entusiasmado com a noite agradável, que uniu "Passion", jantar marroquino e uma conversa cheia de respostas perfeitas e esperadas sobre Edith Piaf, Bernard pediu para o taxista parar no Hotel onde estava hospedado. Nesse momento, uma timidez incontrolável tomou conta de mim, não sabia o que fazer e mal consegui responder, quando ele disse:
-Virgínia, espere um pouco aqui, volto já com uma surpresa...
Fiz um gesto com a cabeça, um tanto curiosa e um outro tanto decepcionada por não ter sido convidada para subir. A curiosidade foi matada logo, nem dois minutos e ele já havia voltado com um CD da Piaf nas mãos.
-Pra você! Um presente meu, para que nunca se esqueça de mim. Você é uma mulher inesquecível, apaixonante...
-Agradeci e seguimos para minha casa. A decepção, que havia se tornado euforia, voltou como único sentimento que me possuía.
-Não quer entrar?
-Não, estou cansado, tenho uma reunião logo cedo. Mas eu anotei seu telefone assim que João me falou sobre você.
-Então tá...
Subi, sem curiosidade alguma em saber o que João falou sobre mim. Estava tão desanimada pelo fora, discreto, é verdade, mas ainda assim um fora, que havia acabado de levar, que nem lembrei de perguntar. Entrei, peguei a champanhe que comprei para o meu aniversário, na esperança de João chegar, de surpresa, e que, na noite de hoje, esperava tomar ao lado de Bernard, e coloquei Piaf para povoar a casa.
Na secretária, dois recados de João, transtornado por não termos ligado, que, ontem me fariam brindar, mas que naquele momento não melhoravam em nada minha tristeza e solidão... Só estava faltando um temporal, daqueles que sempre acontecem em filmes e a mocinha solitária vai à janela olhar. Se bem que aqui não adiantaria muito, a vista é para o prédio da frente cuja única coisa que dá pra ver é o Bubu, um urubu que se instalou no teto por causa da proximidade com o rio Pinheiros.
Narre!-[ comments.]

Saturday, September 25, 2004

Primeiro dia de Balzaca.


Foi como tinha de ser: uma reunião com os amigos mais íntimos. Como a do ano passado, inclusive, com a diferença da presença dele, fazendo suas piadinhas, brincando com os meus amigos, sendo o centro das atrações como sempre. Parecia que a festa era para ele, e eu, a aniversariante, apenas uma coadjuvante. Algo como naqueles filmes em que se precisa de uma festa para que a estrela principal possa brilhar. Esse ano, embora tenha sido uma comemoração agradável, não havia estrela do filme.
Todos se divertindo bastante enquanto eu passeava de grupo em grupo, conversando sobre amenidades. Acho que minha vida pode ser resumida a isso: passear de grupo em grupo conversando amenidades. Confesso que pensei que ele iria aparecer, de repente com um caranguejo na mão... Chegaria no meio da festa, sorriso lindo iluminando seu rosto de menino que fez arte, e roubaria a cena, como sempre fez.
Nos conhecemos assim, num momento eu estava triste, sem saber o que fazer da minha vida, no outro, ele chegou e roubou a cena. Não lembro exatamente do que aconteceu, só lembro que quando me dei conta, estávamos andando de mãos dadas, sem que eu sequer tivesse percebido o momento em que ele pegou na minha mão.
Esse ano, deixou um recado na secretária avisando que teve que viajar, por isso não poderia aparecer. Foi cínico ao lembrar que eu não o convidei. Eu sei que deveria tê-lo feito, mas ele me ignorou solenemente, logo após o término do nosso relacionamento, quando fui convidá-lo para uma festa. Fiquei arredia, inevitável. E, talvez, nem seja questão de orgulho, é o fato de que, pelo menos uma vez, eu gostaria muito de que ele tomasse a iniciativa. Durante todo o tempo eu tive que fazer tudo sozinha, até mesmo para que ele me tocasse, tinha que trazê-lo junto a mim. Depois do primeiro passo, "ele pegava no tranco", só que, sem perceber, acabou com minha auto-estima nesses pequenos detalhes. E eu precisava de tão pouco...
Passei um longo período me perguntando se ele era assim com todas, até que um dia o vi com outra e percebi que não. Ele parecia bem feliz ao lado dela, como se não conseguisse ficar dois segundos sem tocá-la. Era a primeira vez que eu o via com outra e por isso não deixei que me visse. Não queria que me surpreendesse chorando. Depois, acabei me acostumando em vê-lo na companhia de outras mulheres.
-Alô?
-Oi, menina, recebeu meu recado?
-Ah, é você. Sim, recebi. Já chegou de viagem?
-Cheguei hoje.
-Cê foi viajar mesmo ou tava tre... ou era uma desculpa?
-Claro que fui, não tava trepando com ninguém não.
-Bem, se era pra saber se recebi o recado...
- Na realidade não, eu queria te chamar para ir ao cinema. Tá a fim?
-Bem, eu estava saindo para isso...
-Ah, legal, te pego em uma hora, pode ser?
-Não precisa, nos encontramos lá.
-É melhor eu te pegar, é que eu tô servindo de babá prum gringo e ele quer ir ao cinema, só que é pra ver um filme do Godard. Eu mereço, né? Só vejo filme do Godard para tentar comer intelectuais, você deve saber disso.
- Eu nunca te chamei pra ver Godard...
-Não, mas me chamou para ver peças de teatro experimental... Bem, o fato é que você é a única pessoa que eu conheço que agüenta Godard sem dormir, então disse a ele que eu não iria, mas eu tinha uma amiga que poderia acompanhá-lo.
- Eu não sei por que ainda não te mandei pra puta que pariu. Renova seus amigos...
-Ah, o que custa? Pô, cê ia ver que filme?
-Passion, do Godard...
- Aí, tá vendo? Te arrumei companhia. O cara é gente boa. Quebra essa, vai?
- Mas por que uma hora? Eu já estou pronta.
-É que eu tenho que buscar o gringo antes..
.-Tá bom, eu espero.
-Por isso que eu te amo!
Eu odeio quando ele faz isso! Eu deveria ter dito outro filme, eu sei, até tentei, mas não consegui. Droga! Por que eu nunca vejo o que está passando em Shopping? Sou uma boba mesmo. Agora é esperar e ver no que dá...
Narre!-[ comments.]

Um dia de caranguejo

Parece sina encontrá-lo quando vou ao cinema. Dessa vez, não na saída, mas um pouco antes da sessão começar, na loja de bichos de pelúcia.
- Menina! Comprando um bichinho para dormir com você? Pelo jeito aquele negócio de não ter ninguém para deixar uma fita te bagunçou.
- Sempre engraçadinho. Tava procurando uma lagosta.
- Lagosta? Melhor você ir ao Mercado Municipal.
- Isso que você disse foi para rir?
-Não fique brava. E a arara que eu te dei, não serve mais para dormir com você?
- Não é isso, é que eu quero uma lagosta agora. E você, o que faz aqui?
- Te vi entrando...
- Tá sozinho? Que milagre te encontrar por duas vezes sozinho...
- Acabei de deixá-la em casa, na verdade.
- Ainda é a mesma?
- Qual mesma?
- A que jura que eu sou uma louca viciada em achocolatado e deve ter uns17 anos.
- Não, é outra agora... e ela já tinha 18.
- Melhor, né? Não corre o risco de ser preso.
- Crime de Sedução é de 16 anos, creio que tenha baixado para 14, não tenho certeza.
- Tá bem informado, hein?
- Não era você que queria conquistar um garotinho de 16?
- Você sabe que era brincadeira.
- É, eu sei, se ele disser que tem 25 você já descarta.
- Não exagera, 25 são só cinco anos menos, já 18 são 12, né?
- E qual o problema, menina?
- O problema é a lei da gravidade.
- Os homens também sofrem com ela, temos que desafiar essa lei sempre.
- Mas aí que está, quando ela for aplicada em mim, ele não vai conseguir desafiar nem com reza braba, vou ser trocada por uma de 12, o que é o fim para uma mulher.
- E quem disse que você não corre esse risco com um homem da sua idade ou mais velho?
- Eu sei que corro até mais risco com um homem mais velho, mas isso não me salta aos olhos quando tenho que conhecer os amigos dele.
- Boba, a garota que acabei de deixar em casa tem 23 anos e vocês parecem da mesma idade, ninguém diz que você fará 30 anos semana que vem.
- Você ainda lembra...
- É, você é que não lembra.
- Eu lembrei, comprei presente, cartão, rascunhei e-mail, mas...
- Mas?
- Desisti, quem anda pra trás é caranguejo, você me ensinou isso.
- Eu sei... - ele ficou em silêncio por alguns segundos e disse - mas e aí, achou a lagosta?
- Não, gostei da coruja, só que vou decidir uma outra hora, agora já está quase na hora da sessão começar. E você, vai ficar aqui?
- Acho que sim, me deu vontade de comprar um caranguejo, quem sabe eu acho.
Nessa hora senti uma vontadade absurda de abraçá-lo, mas achei melhor ir embora sem qualquer contato físico. Sabia que se fizesse isso, não iria querer mais sair de seus braços e teria que fazê-lo assim que amanhecesse. Nosso problema sempre foi esse, com a diferença que quando estávamos juntos, eu é quem pedia para que ele fosse embora ao amanhecer...
Narre!-[ comments.]

A fita

Tive uma crise de choro após o filme. Não consegui esperar o final dos créditos para ouvir a musiquinha e não atendi aos gritos do porteiro acostumado a comentar a película comigo, após a sessão. Saí correndo em busca de um café isolado e com no máximo duas ou três pessoas além do garçon. Sentei e torci para que o garçon não me perguntasse nada além do que eu queria, pois estava difícil segurar as lágrimas. Muita sorte ele trazer um café, sem nem olhar para o meu rosto, completamente deformado e inchado de tanto chorar. Após trinta minutos, quando finalmente consegui controlar o choro, sem ter tocado no café, pedi a conta. Resolvi andar um pouco e pensar. Enquanto andava pelas galerias atrás de alguma coisa boba que me fizesse esquecer os motivos do choro, encontrei-o. Dessa vez estava sozinho.
- Oi, menina. Cê tava chorando? Aconteceu alguma coisa, seus olhos estão vermelhos e inchados.
- Nada demais, tive uma crise de choro após um filme.
- Que filme?
- Minha vida sem mim. Sei lá, de repente percebi que vou fazer 30 anos, daqui a poucos dias, e não tenho ninguém para deixar uma fita.
Nessa hora olhou-me assustado, jamais me imaginaria chorando ao ver um filme desses, jamais me convidaria para ver um filme assim. Só lembaria de me convidar para ir ao cinema, se fosse para ver um filme russo com legenda em alemão, mesmo assim para tentar me impressionar, e só me imaginava em cinematecas assistindo mostras do Fellini ou Godard.
Mostrou-se preocupado, nunca havia me visto tão transtornada, que até pegou na minha mão e convidou-me para irmos à sua casa, tomar um achocolatado e ouvir Chico Buarque. Apesar de esperar por quase um ano para encontrá-lo sozinho e ter sonhado com esse convite, não aceitei. Abaixei a cabeça e disse que era melhor ir embora. Ele só conhecia 10% de mim e ainda assim não conseguiu me amar...
Narre!-[ comments.]

Achocolatado

Os termômetros marcavam dez graus e a neblina cobria essa cidade que já é cinza por natureza. Ainda assim resolvi sair, não aguentava mais ficar prostrada diante da TV, zapeando. Precisava de gente e de ficção. Decidi ir ao cinema. O frio parecia emudecer as pessoas e as impedia de sorrir. Durante o caminho, percebia a imagem do meu rosto refletida nas vitrines das lojas já fechadas. Era um rosto acinzentado e de espera. Eu me vi parecida com uma velha professora que conheci há quinze anos atrás. Ela usava óculos que ocupavam muito mais que a área dos olhos, seu corte de cabelo lembrava as francesinhas da década de 30 e seu rosto era acinzentado e de espera.Apesar da delicadeza da película, não saí tocada como gostaria. O frio tocava-me muito mais naquele momento e por isso resolvi passar num supermercado para comprar achocolatado, antes de voltar para casa. Já com achocolatado na bolsa, seguia rumo à estação de metrô quando fui surpreendida por uma voz:
- De onde você está vindo, menina?
Era ele, só podia ser, reconheceria aquela voz ainda que não a ouvisse por décadas, fora o hábito de chamar-me de menina, apesar de termos a mesma idade, apenas alguns meses de diferença. Olhei para trás e tive a confirmação. Estava acompanhado por uma garota que deveria ter no máximo 20 anos. Fiquei parada sem conseguir dizer uma palavra. Estava paralisada olhando o casal. Novamente ele perguntou:
- De onde você está vindo, menina?
- Do mercado, fui comprar achoco... - não consegui terminar a frase, um alarme tocou no meu cérebro e denunciou a grande bobagem que eu estava dizendo. Ele, é claro, não perderia a piada por nada e logo disse:
- Nossa, precisava vir do outro lado da cidade para comprar um achocolatado?
A garota, sem entender, perguntou:
- Como assim, onde ela mora?
Fiquei completamente atordoada ao ver a expressão da moça quando ele respondeu sua pergunta. Ela olhou-me como quem fosse dizer: "você é maluca, sair nesse frio só para comprar achocolatado e num supermercado tão longe da sua casa? "
Já tinha levado a fama, resolvi deixar o constrangimento de lado e respondi:
- Pois é, eu sou viciada em a achocolatado, não posso ficar nenhum segundo sem. Mas tem que ser o de uma marca específica e não tinha perto de casa, nem por todos os supermecados no caminho até aqui. Ainda bem que encontrei , minhas crises de abstinência são terríveis. Quase matei meu irmão, da última vez e cheguei a ferir, gravemente, meu cachorro.
A moça ficou assustada, parecia realmente acreditar que eu seria capaz de matar se ficasse sem achocolatado. Ele, porém, percebeu a brincadeira e sorria como no tempo em que estávamos juntos. Por instantes nos olhamos como se estivéssemos lembrando dos mesmos momentos e nos perguntando o que aconteceu. A mão de sua acompanhante ao entrelaçar a dele, indicando que pretendia ir embora, respondeu nossa pergunta. Constrangido, despediu-se de mim friamente e foi embora com ela. Eu continuei em direção ao metrô, caminhando com a mesma lentidão e timidez da lágrima que caia sobre meu rosto que já não esperava mais nada...
Narre!-[ comments.]

As coisas que beijei e não vivi

Creio que tudo está virando carta neste momento em que exorcizo um ponto obscuro da minha vida. A paixão inicial que se transformara em obsessão, hoje não passa de uma necessidade para me livrar de quatro frustrações, pontos que marcam uma divisão de olhar. A cada segundo que passa tenho medo de chegar aos 30 anos, devo confessar, embora faltem poucos dias para isso. Estou com medo de envelhecer, medo da passagem dos anos e das horas. Não é uma questão estética, não me importo com a lei da gravidade. Se meus seios não estarão firmes, se minha bunda cairá, ou mesmo se terei rugas e nenhum homem se interessará por mim. Nada disso me importa, nunca me considerei uma mulher bonita e atraente. A única que vez em que um homem elogiara exaustivamente meus dotes físicos, contrariou-me tanto que sentia-me como um pedaço de carne, pronta para o abate, mesmo fazendo um esforço enorme para que ele só me enxergasse assim.O medo dos 30 anos é maior que os valores sociais, estéticos ou algo do gênero. O medo dos 30 anos nasce da idéia fixa em romper com a necessidade da intensidade. Chega o momento em que a dor não tem razão, a tristeza e o pessimismo me enojam. O asco pelo descrédito é tamanho, que chego a acreditar-me incapaz de enxergar um caminho para fugir do guarda-chuva em céu de brigadeiro. Sinto asco de tudo que construi. Mulheres entram na minha vida para que eu elimine-as dela. Um basta em literaturas tristonhas...Quero uma casa de filme americano, filhos e um marido chegando com pão frequinho para tomar café.Quero, pela primeira vez, não achar essa cena enfadonha e entediante.
Narre!-[ comments.]