Narrativa Feminina

Esta é uma obra de ficção.
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Thursday, October 21, 2004

Modernidade

-Você deve ser o Bernard! Prazer, eu sou Glória, mãe da Virgínia.
-Nossa, pensei que fosse no máximo uma irmã dela.
-Obrigada, você é muito gentil. Senta aí, vou lá chamar minha filha.
Minha mãe me avisou da chegada do Bernard e eu fui recebê-lo. Estava curiosa para saber o que era.
-Oi, meu querido!
-Está curiosa, não está?
-Claro!
-Vai ficar mais ainda, porque vai deixar a caixa aqui e só vai abrir depois! Vamos!
Até tentei relutar, mas não consegui, tive que deixar a enorme caixa em casa, sem saber o que havia dentro.
Seguimos rumo à noite paulistana, enquanto eu dirigia, Bernard dissertava sobre a beleza da minha mãe.
-Ela é muito nova para ser sua mãe!
-É, engravidou aos 16 anos, foi obrigada a casar, meu avô era do exército.
-E seu pai?
-Militante comunista e avesso a casamentos. Muito pequeno burguês para ele.
-Uau! Quantos anos ele tinha?
-19.
-Pensei que isso de gravidez na adolescência fosse um problema atual no Brasil.
-Na década de 70 também deveria ser. Só que apesar do tal amor livre, revolução sexual, todo mundo trepando com todo mundo, os pais ainda podiam obrigar suas filhas de 16 anos a casarem, ou melhor, obrigar os garotos que engravidavam suas filhas. Anticoncepcional não era tão difundido quanto o sexo, eu acho. Além disso, o HIV veio só na década de 80, camisinha, antes disso, que eu saiba, só Casanova e Cleópatra usavam.
-É verdade. Até hoje é quase assim. Eu, quando era heterossexual, quase não usava camisinha. Depois que me assumi gay, nunca fiz sexo sem.
-Sério?
-É, acho que os gays ficaram com mais medo, porque no início tinha aquele negócio de grupo de risco.
-Deve ser mesmo, alguns homens ainda se recusam a usar, mas eu perguntei se era sério que você já foi hetero.
Ele deu uma gargalhada e respondeu:
-Há muito tempo atrás, nem me lembro mais de tão ruim que era.
-Que pena!
Ele continuou a rir, disse que pelo menos eu não era daquelas que insistiam em dizer que isso acontecia porque ele nunca encontrou uma mulher de verdade e todas as baboseiras que se usam para tentar fazer alguém rever sua orientação sexual.
O caminho foi agradável e começo da balada também. Bernard estava adorando a casa, também, beijava na boca de cada homem lindo, um melhor que o outro. Eu até que me divertida, só que naquele dia eu estava um tanto deprimida, meio chateada e cansada de estar sozinha, preferi ficar um tempo observando, ora no bar, ora no lounge. O problema é que desde que o João entrou na minha vida, eu não via mais sentido em ficar com alguém por ficar. É bom, também, mas eu não conseguia. Talvez precisasse de mais tempo para voltar à ativa, sem querer mais que um dia.
Em um dos momentos em que fiquei encostada no bar, Bernard chegou para conversar. Junto com ele, um casal de namorados. O rapaz, que deveria ter seus 25 anos, se dirigiu a mim, dizendo:
-Gata, você é muito linda, estou doido para ficar com você, mas assim, você fica com minha mina também?
Puxei Bernard para o meu lado e disse:
-Só se você ficar com meu amigo também. Sabe o que é, eu sinto tesão em ver dois homens se beijando. E aí, topa?
Ele ficou bravo e a namorada também, acharam um absurdo a minha proposta, só Bernard que achou o máximo e ficou rindo.
-E se ele topasse, Vírginia?
-Eu ficava com a mina dele, ué. Ele não é tão moderno?
-Moderno? Machista, isso sim. Viu a namorada, será que ela aceita as mulheres porque gosta?
-Nada, mais machista que ele, porque se gostasse mesmo, não iria achar problema do namorado ser bissexual também, né?
-Verdade! Bem, minha querida, eu vou indo, vim aqui para me despedir, arrumei um par... Sabe o moreno de olhos claros que eu estava beijando?
Fiz um gesto afirmando que sabia, embora eu não soubesse. Ele beijou tantos! Nos despedimos e eu resolvi ir embora também. Confesso que voltei para casa meio tristonha. Essas coisas dão a sensação de que todo mundo se arruma, menos eu. Ainda mais quando eu lembrava que minha mãe também tinha se arrumado e só estava há dois dias aqui em São Paulo.
Chegando na portaria, dei de cara com João, dormindo no sofá da entradal. O porteiro o conhece, sempre deixa que ele entre, e eu me esqueci de dizer João não tinha mais o passe livre, que eu queria ser avisada. Acho que fiz isso para que ele chegasse de surpresa. A esperança é a última que morre, não é mesmo?
-João, acorda! O que você está fazendo aqui?
-Eu resolvi te esperar e aí peguei no sono. Que horas são?
-Três e meia.
-Caramba! Preciso embora...
Claro que eu não deixei!
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Sunday, October 17, 2004

Minha mãe gosta de mulher!

-Mãe, vem ver se eu estou bem!
- Tá show!
- Show? Eu, hein? No mercado perguntou se "rolou" alguma coisa, agora diz que estou show! Fica saindo com garotão, vai acabar ficando monossilábica.
- Que preconceito... como você é boba e está ficando amarga! Quando eu tinha sua idade...
-Quando a Sra tinha minha idade, eu tinha 13 anos e a sra ainda era casada com meu pai.
- É, tem razão, quando eu tinha sua idade eu era pior que você. Aguentava aquele traste do seu pai!
- Não fala assim...
- Primeiro reclama das minhas gírias, agora reclama do jeito que falo do seu pai...
- Desculpe, eu sei que estou chata. É que ele é meu pai, né?
- É, é sim... embora ele tenha esquecido disso. Há quanto tempo não fala com ele?
- Quase 9 anos. Na verdade, falar, falar mesmo, a última vez foi aos 13 quando ele me contou que vocês iriam se separar... Lembro exatamente da frase: "Filha, tudo que eu menos quero é te magoar". Acho que ouvi isso a minha vida inteira de todos os homens. Com algumas variações, claro.
- Tipo: "não quero que você se envolva"....
- É... ou: "Você é muito especial, não tenho o direito de te fazer sofrer".
- Homens, não importa a idade, falam a mesma coisa sempre.
- E os garotões, mãe, são diferentes?
- Quando você tinha 18 anos eles não faziam a mesma coisa? Não importa a idade, Virgínia, esquece essa bobagem...
- É, tem razão...o João sempre diz isso.
- Falando nele, como você se apaixonou? Cê é cheia de coisas, gosta de homens cultos, refinados. João não é nada disso.
- É, mas é mais sensível que todos os homens que conheci. Tinha um sorriso de criança. Era especial. Difícil explicar. Ele dormia nas peças que eu o convidava para ver, achava um saco a conversa dos meus amigos, mas sempre roubava a cena. Tinha a frase exata, entende?
- Entendo. Pelo jeito ainda gosta dele, né?
- Acho que sim... Quando conheci o francês até tive uma esperança, mas...
- É com ele que vai sair, né?
- Ele vai passar aqui, disse que quer me dar um presente. Eu disse a ele que era mais fácil eu buscá-lo no hotel e que guardaria o presente no carro, só que não adiantou. Parece que o presente é um tanto frágil e Bernard quer que eu só abra pela manhã. Disse que tem que estar longe, para eu lembrar dele logo cedo
- É, tinha que ser gay, homens perfeitos assim não existem.
- Nada, nem todo gay é assim. A maioria não é... são homens, mãe.
- É, eu sei. Houve um tempo que achei que mulheres eram diferente. Até saí com umas duas, mas também não tem diferença.
-O Quê? A senhora já saiu com mulher?
- Já, qual o problema? Você nunca?
- Nunca.
- Como é limitada essa minha filha... Se não fosse o traste do seu pai, iria achar que foi trocada na maternidade!
- Não sou tão limitada assim. Só não me sinto atraída por mulheres... Parece que está na moda ser bi, pelo jeito. Até minha mãe é...
- Não quer saber como foi?
- Não, obrigada... A senhora não quer ir com a gente, não vai achar nada demais em ir numa balada GLS, né?
- Não, até quero conhecer, mas hoje vou sair com um cara que conheci ontem no supermercado.
- Hã? Eu vou aquele supermercado há 5 anos e nunca flertei com ninguém!
- Nossa, há anos que não ouço o verbo flertar. Deve ser por isso que ninguém chegou perto. Quem fala flertar dá medo nas pessoas...
É, tenho muito que aprender com minha mãe.




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Tuesday, October 12, 2004

Eu poderia ter acordado sem essa...

Primeiro é o telefone que me acorda, depois é a porta que não me deixa voltar a dormir.
- Mãe?
-Não, um ectoplasma dela. Que pergunta! E que olheiras!
-E que malas são essas?
-As minhas, ué.
Achei melhor não perguntar nada e decidi ir ao supermercado. Não poderia voltar a dormir mesmo e queria ficar sozinha.
-Mãe, eu estava indo ao supermercado, tudo bem?
-Tudo ótimo! Vamos!!!
-Vamos?
-É, vamos. Mas antes você vai se arrumar, né? Você está horrível!
Estava muito cansada para discutir, deixei-a fazer o que quisesse.
Fui com ela ao supermercado e comecei a pegar os produtos de maior necessidade.
-Vinho francês, vinho branco alemão... vai dar um festa?
-Não, tem muito sangue na minha corrente alcoólica, preciso repor.
-Pinga não resolve? É mais barato...
-Não, sou uma alcoólatra fresca.
-Põe fresca nisso. E pra que tanto chocolate, além de alcoólatra é chocólatra?
-Li numa revista feminina que substitui o sexo.
-Tá lendo revista feminina?! Você sempre me criticava, falava que essas revistas não passavam de manuais para mulheres de borracha.
-Essa estava na sala de espera da dentista.
-Ah, tá. Mas e o francês, não rolou nada?
-É gay.
-Só porque não quis subir? Olha o preconceito.
-Não, ele falou. Pouco antes da senhora chegar, ele tinha me telefonado..
-Então é por isso que o João pediu pra você sair com ele....
-João não sabe. Ele me ligou justamente por isso, queria que eu o levasse para umas baladas GLS, porque não agüentava mais ir nos lugares que o João o levava. Acredita que na noite passada, foram num puteiro?
-Bem a cara do seu ex. mesmo. E o que o francês fez pra disfarçar?
-Disse que estava interessado em mim. Aliás, um dos motivos para o Bernard não ter me ligado antes foi o ciúmes do João.Ele disse que cinema e essas coisas cults eu era boa companhia, mas pra balada não, porque eu só ia em lugar "diferente"... Mal sabe ele que é nesses lugares "diferentes" que o francês quer ir.
-Pois é, mas tá na hora de você parar de ir em lugares "diferentes", senão vai acabar ficando uma baleia de tanto comer chocolate.
-Ah, também não é assim. E a senhora, por que as malas?
-Quero passar uns dias com minha filha, não posso?
-Fala a verdade, mãe.
-Pega um tablete desse aí pra mim?
-Brigou com o Marcelo?
-Marcelo? Eu terminei com o Marcelo há três meses, Virgínia. Esqueceu que era Flávio, o nome do último que te apresentei?
-Ah é, o surfista, mais novo que eu... Pra que a senhora quer chocolate, brigaram há quanto tempo?
- Ontem... só que, sabe como é, garotão, surfista... Havia uma certa regulari...
-Tá tá tá, já entendi, não quero saber, não é da minha conta.
-Ué, só por que eu sou sua mãe?
-A Sra fala só? A minha mãe tem uma vida sexual mais ativa que a minha, quer me contar detalhes e ainda acha que é pouco?
Deixei-a próxima ao carrinho e fui na direção da seção de bebidas.
-Filha, onde você vai?
-Seguir seu conselho e pegar pinga....
-Não vai devolver os vinhos?
-Claro que não! A Senhora ainda sabe fazer caipirinha, né? Vou pegar limão também... e mais chocolate! A matéria da revista também falava algo sobre chocolate ser antidepressivo.
Garotão, regularidade... e ela ainda diz isso tão naturalmente! Eu preciso dormir! Argh!
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